Friday, April 17, 2009

//Lacrimosa// ::No blind eyes can see::





Há músicas que devem permanecer livres enclausuradas no nosso mais íntimo ser. Não devem ser partilhadas, não devem ser gastas, não devem ser ouvidas, devem permanecer na saudade, na recordação dos sentimentos sentidos e passados. Não me ocorre outra música cheia de carga melancólica e significado puro, a não ser esta No Blind Eyes Can See, dos alemães Lacrimosa, do álbum Inferno, de 1995.

Há músicas que nos tocam para sempre, que marcam um ponto de viragem na nossa vida, onde se consegue separar o antes e o depois, onde depois nada é como antes. Mais uma vez, não me ocorre outra música que me tenha causado tamanho efeito. A música No Blind Eyes Can See marca o instant zero de uma altura, que perdura. Surgiu na altura perfeita. E para sempre ficou marcada no coração e alma.

Andava na altura a descobrir o gótico, a cultura romântica e as músicas, e a primeira vez que contactei com Lacrimosa foi com esta música, num contexto muito especial da minha vida. A música bateu-me forte, como ainda o faz, mas agora recordando-me o que foi e, de certa forma, do o que ainda é. É inevitável associar músicas a momentos vividos e sentidos, e esta música era perfeita para a situação.

Sempre gostei de músicas longas e de vozes femininas. Esta é as duas coisas. Música longa, complexa, com uma letra forte, com um misto de voz feminina cristalina e límpida com masculina, sombria e perturbante, perpetuando o sentimento de melancolia que abraçava o que sentia, e que talvez não devesse sentir.

O quarto estava acolhadoramente frio, apenas abraçado pelas sombras de uma leve luz de uma vela a um canto, junto à escrivaninha, onde esperavam papel e caneta por um momento de alma. As palavras corriam-me diante dos meus olhos, sob a forma de lágrimas, e eram acolhidas pelo papel, que as absorvia e lhes dava forma. Era uma carta de despedida, sem antes ter havido sequer qualquer encontro. Era uma carta de mim para mim para ela. Uma carta que falava dela, da beleza dela, dos seus olhos, cor de pele, cor de cabelo. Da sua voz. Da sua preseça. Da sua beleza. Da Beleza. Da Tragédia da Beleza. As lágrimas queriam abraçá-la, senti-la... mas em vão. A música tocava, tocava, as palavras dançavam e dançavam. A alma tremia. A noite, calma e fria, parava no tempo.

Será que tal carta existiu? Não sei dizer, mas existiram sim as palavras que lhe deram forma, e o sentimento que lhe deu origem. Durante anos esta memória ficou adormecida junto da música, como um único ser. Ao acordar um, o outro também acordou. Agora resta-me voltar a adormecê-los num ambiente melancólico e doce, em paz.

Trouxe esta música de volta à luz, de onde não pertence, por breves momentos apenas. É uma música que deve permanecer livre na clausura do íntimo, por detrás de portões de madeira metálica acorrentados, apenas banhada pela ténue luz lunar, que entra de uma alta janela da torre da masmorra sensorial. Custou-me fazê-lo. Tive de sair de mim para o fazer. A carga desta música é tal que foi preciso algum esforço transcrever aqui o que senti e foi já sentido. Sinto saudades de sentir o que já não sinto.

Posso muito viver no passado, mas as memórias são o que nos fazem ser...





Atrevo-me a dizer que não há mais gótico que o gótico de Lacrimosa. Tilo Wolff é mestre. Cada trabalho dos Lacrimosa cria um momento melancólico, romântico, frio. Desde as letras, à música, às vozes, até à própria art work. E esta música um bom exemplo disso mesmo.

Durante anos, e por causa desta música e do misticismo que representa para mim, lutei contra mim próprio de acompanhar os restantes trabalhos e mais recentes da banda. Agora surgiu-me inadvertidamente esta recordação ao saber que a banda está para lançar Sehnsucht, o décimo de originais, a ser editado em Maio.

4 escutas:

elsafer said...

" aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós" Antoine de Saint Exupery.
Voltou a tinta do pensamento e traduziu-se umas palavras em musica, em cor, ou simplesmente flui com sentimento e paixão

sonjita said...

Consigo vizualizar o momento só pela tua descrição ao som desta musica... puramente melancólica... há uns anos atrás também teria permanecido!
Obrigada pela partilha de uma música que te desperta tanto sentimento...

Fica bem

Wellen said...

::eferreira
senti a necessidade, não podia adiar mais, ainda mais com uma recordação destas

::sonjita
que bom que consegues ver através das minhas palavras. ;) parece que ainda não lhe perdi o jeito :p
a blogosfera é um local também de partilha... não convém é publicitar os nossos cantinhos "a torto e a direito", como nós os 3 concordamos ;)

sonjita said...

Wellen:

Sim... parece-me ponto assente entre os 3.

BJoka